sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Te detesto. Não. Te amo como se amarrassem trezentas borrachinhas daquelas que a enfermeira aperta o braço da gente na hora de enfiar a agulha. E doi. O vermelho esvaindo das nossas certezas. Te detesto. Repito isso para mim a cada grito.
Outro dia te olhei bem fixamente, você não me enxergava e eu continuei te olhando. Logo em seguida procurei a amarra. Facão no punho, me livro dessa maldição. Não a encontrei em lugar nenhum. Te detesto, continuo. E de repente, penso em você seguidamente: dentro do  ônibus, dentro do quarto, aqui dentro desse fundo imenso em que te olho. Já leu Oscar Wilde, amor? Pensei em te responder. Se disparo contro o teu peito onde sangra esse gostar? Mancho o céu dessa forma e não há quem limpe.
E me disseram para deixar você à vontade, voando livre, pousando onde bem quisesse. E eu deixo, mas espero sempre você passar aqui por cima para te pedir permissão. Para continuar esperando. Te detesto. E quando você está longe eu grito. Quando você está perto, apenas penso. Te detesto. Principalmente quando você não aparece, repito.
Círculos são cercas.
Cerca é um gostar igual ao meu assim. Borrachinhas no braço formam cercas.
O pior confinamento é o círculo.
Gosto de você.
Trezentas borrachinhas  no meu braço.
È uma transfusão de sangue e não metáfora.
Te detesto por isso.


sexta-feira, 4 de setembro de 2015



Eram exatamente nove horas da manhã.
Acordei do susto de mais um dos pesadelos recorrentes de noites mal dormidas.
O peito palpitando, suor frio, a ansiedade de sempre.
Sem fome pro café, o silêncio e a cama atolada de coisas que tentam evitar ausências.
A casa estava cheia de buracos fundos, tinha uma espécie de horror escorrendo deles.
Estava insuportável olhar em volta, tudo era de um oco sem fundo, sem eco
Subi ao andar ainda inacabado, tudo cheirava a desespero e bituca de cigarros.
As mãos trêmulas como sempre tinham uma necessidade estranha, um impulso.
Avistei uma pá.
Rasguei um saco de cimento e comecei misturar a massa.
Instinto.
Tudo tinha de ser tampado, a estrutura estava completamente danificada.
Tudo havia sido acumulado nos buracos que também se acumulavam em quantidades assustadoras.
Nuca tinha feito cimento, não me entendo com misturas, mas algo me gritava o ponto exato capaz de estancar tudo.
Primeiro os restos dos cigarros fumados, foram muitas pás necessárias, afinal muito fôlego saia de um peito chaminé.
Fui cimentando principalmente todos os maços ainda não fumados, era primordial não precisar mais deles.
Deixei a prataria intocada da casa perfeita, rebocada em uma nova cozinha, agora sem buracos.
Na sala os bibelôs, as flores, as fotos onde não me reconhecia, as poltronas onde fui feliz.
Avancei veloz pro quarto onde existia o buraco mais profundo.
Fui jogando as coisas acumuladas na cama de ausências, os objetos trazidos por quem não tinha motivos.
Enfiei junto o livro de poemas, o outro que refletia tão lindamente sobre casamento, aquele que um dia comecei a ler acompanhado.
Comecei então a vomitar todos os bilhetes e cartas que nunca foram entregues e a esperança de receber as que nunca vão vir.
Piercings que nunca pertenceram ao meu corpo, fotos nunca tiradas.
Palavras que martelavam da boca de outros em minha cabeça.
Uma bermuda esquecida que nunca saía da última gaveta de uma cômoda de recordações.
Em agonia, afundei a cômoda inteira com uma nova remeça de cimento, tinha lembranças demais.
Um bêbado que cismava em ser meu filho se debatia num dos buracos, nada que o tempo não petrificasse.
Junto com ele a violência, a culpa e todos os aplicativos telefônicos que de nada serviram, a não ser pela culpa.
A bicicleta que só me levava ao mesmo endereço.
Enxerguei um calendário onde todos os dias eram 23 de agosto, misturei com o concreto.
Entulhei Divas do PoP, Drag Queens e um mapa astral que comparava virgem e leão.
Vários sapatos de saltos muito finos que perfuravam um amor puro.
Esse mesmo amor tenho que rebocar várias vezes, muitas são as camadas diárias.
Olhei em volta, tudo cinza e com rachaduras lindas, prontas para explodir.
Cimento e glitter de várias cores numa lápide dizendo: Volte Sempre...

terça-feira, 25 de agosto de 2015

violências cotidianas e a inversão de papeis.

Onde você estava até agora? No trabalho, tinha coisas acumuladas para concluir. E esse cheiro de bebida? Acabamos comprando umas cervejas para passar o tempo. No trabalho? Já não disse que foi. E o que você faz acordada? Eu vou te deixar, quero me separar de você. Tudo bem, mas amanhã que hoje eu tenho sono demais acumulado para perder tempo com o seu papinho de me deixar.
Benhê?! Abre o portão para o cachorro que ele quer mijar. Oh mulher, o cachorro vai acordar o Junior e você não abre essa merda. Será que eu vou precisar levantar?! Você não presta para nada mesmo, vou te contar viu?! Vai Totó mija logo porra, já me acordou mesmo. Essa mulher quer me ferrar.
Onde está o café? Nem colocou a mesa, acha que porque dormiu no sofá a senhora tem direito de dormir até mais tarde é? Onde o imbecil do entregador jogou o jornal hoje, se o cachorro pegou novamente eu mato os dois. Eu preciso sair daqui a uma hora cadê o café da manhã? O mínimo que você poderia fazer por mim é providenciar o café. Não entendo porque dormir tanto se passa o dia indo de um lado para o outro nessa cadeira. Mulher deixa de cena e vai cuidar da vida que o menino tem que estar pronto para ir à escola comigo quando eu sair. Onde você enfiou minha toalha? Porque você tira as minhas coisas do lugar? Porque não para de me encher o saco? Não acredito você não comprou o meu barbeador, eu disse que precisava de um. Não posso contar com você nem para isso?! Coisas simples mulher, simples demais até para você. Benhê?! Separa a blusa listrada que hoje eu tenho reunião. Trouxe o sapato do conserto né? Pelo menos isso.
Amor? Onde está o Júnior? Cadê o café? Tenho tempo para isso não mulher, adiante. Onde essa mulher se meteu, como alguém que não anda pode se esconder assim nunca casa tão pequena? Mulher tá no quintal? Deixou salada de fruta na geladeira? Apronta o menino que eu vou comer o que tiver e correr que não dá tempo para ficar vendo sua ceninha de novela mexicana não, não quer falar não fala, não quer fazer comida não faz ou você acha que eu preciso de você pra alguma coisa?

Benhê,
Como eu saiba que você abriria a geladeira resolvi garantir que você leria meu bilhete. Cansei das suas limitações e dessa sua dependência toda. Quero mais da vida do que prover teu bem estar, não quero ser muleta de ninguém. Soa até ridículo para você. Se vira com o café, vê se lembra de dar comida e prender o cachorro, o jornal está em cima da TV, o barbeador na dispensa, sua toalha presa atrás da porta e a blusa listrada essa você vai ter que passar. Porque eu cansei de alisar a tua vida para você não precisar cuidar de você mesmo, cansei de me colocar num lugar que não me cabe e cansei de ser dependente da tua dependência. Agora eu estou por minha conta, o Junior eu já deixei no colégio, acho melhor você ligar para tua mãe e procurar um lugar para morar. Agora você está por sua conta. Vire-se sozinho.
Beijos de quem te quis mas não deu conta de carregar nós dois.

Mas veja só que teatro, eu fazendo tudo por ela e ela nem para reconhecer o meu esforço. Vai tarde.

Onde será que ela guarda a comida do cachorro?

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Você me libertou de mim. Estremeceu as raízes cravadas que me prendiam aonde eu estava, e me recusava a sair.
Você tomou de mim as noites tranquilas. Me deu coragem pra enfrentar o medo do escuro.
A mulher livre, que queria ser livre, mas se aprisionava em si, redescobriu a liberdade. Não a liberdade tátil. A liberdade dos instintos antes tolhidos. Liberdade pra sentir a beleza e a dureza da entrega.
 Incondicional. Avassaladora.
 Antes de você havia dentro de mim um vazio. 
Um oco. Um útero.
Dentro de mim se fez uma vida.  Que cresceu dentro do meu corpo. Que cresceu dentro da minha alma. Que se alimentou do meu alimento. Que vingou do meu sangue. E do meu sangue viveu e ao mundo veio.
Uma vida.
Uma vida livre.
Um luto. Uma revolução
Você me libertou de mim. E dói. 
Dói porque é livre demais. E isso me fere.  E me alimenta também.
Dentro de mim havia um vazio.
Que trasbordou.
Que escorreu por todos os cantos de mim.